"Pelo reconhecimento social extensivo e intensivo em todas as camadas, classes e segmentos sociais, em jornais, livros, histórias populares, anedotário e revistas, a forma de interação balizada pelo 'sabe com quem está falando?' parece estar mesmo implantada - ao lado do carnaval, do jogo do bicho, do futebol e da malandragem - no nosso coração cultural. [...]
Outro traço do 'sabe com quem está falando?' é que a expressão remete a uma vertente indesejável da cultura brasileira. Pois o rito autoritário indica sempre uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece avessa ao conflito. Não que com isso elimine o conflito. Ao contrário, como toda sociedade dependente, colonial e periférica, a nossa tem um alto nível de conflitos e de crises. Mas entre a existência da crise e o seu reconhecimento existe um vasto caminho a ser percorrido. Há formações sociais que logo buscam enfrentar as crises, tomando-as como parte intrínseca de sua vida política e social, enquanto, em outras ordens sociais, a crise e o conflito são inadmissíveis. Numa sociedade a crise indica algo a ser corrigido; noutra, representa o fim de uma era, sendo sinal de catástrofe. Tudo indica que, no Brasil, concebemos os conflitos como presságios do fim do mundo, e como fraquezas - o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo nas suas versões oficiais e necessariamente solidárias. [...]
[...] Ora, o que o estudo do 'sabe com quem está falando?' permite realizar é a descoberta de uma espécie de paradoxo numa sociedade voltada para tudo o que é universal e cordial, a descoberta do particular e do hierarquizado. E essa descoberta se dá em condições peculiares: há uma regra que nega e reprime o seu uso. Mas há uma prática igualmente geral que estimula seu emprego. [...] Assim, o carnaval é gritado e o 'sabe com quem está falando?', escondido. Um é assunto de livros e de filmes; o outro, de eventuais artigos antropológicos, não sendo posto no rol das coisas sérias e agradáveis, como o futebol, o jogo do bicho e a cachaça. [...]
Mas, para tornar a situação complicada, havia muitos casos em que o 'sabe com quem está falando?' tinha sido usado por um inferior (ou subalterno) contra outra pessoa qualquer, como identificação social vertical mediatizando o uso da fórmula, isto é, com o subordinado tomando a projeção social do seu chefe, patrão ou empregador, como uma capa de sua própria posição. Desse modo, são fartos os exemplos do empregado usando o ritual de afastamento do seguinte modo 'sabe com quem está falando?' Eu sou o motorista do Ministro!' (ou do General Fulano de Tal! ou do Chefe do SNI!). Um caso colhido por um dos meus colaboradores e narrado pelo próprio empregado (uma doméstica) é um excelente exemplo dessas reações verticais intensas, em que existe a projeção de posição social: 'Eu tomava conta de uma fazenda de um coronel e seus subordinados gozavam da casa. Um, por causa de uma mudança de quarto, resolveu perguntar se eu sabia com quem estava falando. Mas, quando chegou o coronel, eu perguntei a ele quem mandava na casa e ele disse que era eu e o 'com quem tá falando' teve de pedir desculpas'.
O poder de tais usos e a nossa familiaridade com essa forma de identificação social revelam seu impacto e a sua frequência no cenário brasileiro. [...] Quanto mais alta sua posição, mais impacto ganha o uso do 'sabe com quem está falando?' pelos seus inferiores, pois o fenômeno relevante é o da projeção da posição social para mais de um indivíduo, revelando como em certas formações sociais uma determinada posição social pode recobrir mais que um indivíduo, tendendo a ser tomada como uma verdadeira instituição. [...]
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 182-191.
Roberto DaMatta (1936-), historiador e antropólogo, é um dos mais destacados intelectuais brasileiros contemporâneos. É autor de diversos livros, artigos e ensaios sobre traços comportamentais brasileiros, futebol e Carnaval.
SAIBA MAIS
- Paradoxo; contradição.
QUESTÕES PROPOSTAS
1. Explique por que a expressão "você sabe com quem está falando?" remete a uma vertente indesejável da cultura brasileira.
2. Que paradoxo é possível descobrir com o estudo dessa expressão?
3. A expressão "você sabe com quem está falando?" está incorporada nas diversas camadas sociais brasileiras nos dias de hoje. Dê um exemplo.
4. Qual é o traço de permanência do "você sabe com quem está falando?" do século XIX nos dias atuais?